A Praticagem e o desafio dos navios gigantes
O que impede um porto de receber mais navios? Como tornar um porto mais eficiente e produtivo? Será que é possível atracar um navio ainda maior neste porto? Ao longo das décadas, essas têm sido algumas das perguntas que os Práticos têm nos ajudado a responder por meio do incansável trabalho e investimento em tecnologia de ponta.
Nos últimos 70 anos, o comprimento, calado e capacidade dos navios cargueiros têm crescido sem parar. Nos anos 50, um navio cargueiro tinha até 200 metros de comprimento, 9 metros de calado e carregava 800 TEUs (unidade equivalente a um container de 20 pés). Nos anos 2000, um grande cargueiro tinha 300 metros de comprimento, 13 metros de calado e carregava 5.000 TEUs. Vinte anos depois, os maiores conteineiros da atualidade chegam a quase 400 metros de comprimento, 16 metros de calado e 20.000 TEUs de carga, e os super graneleiros chegam a calar 23 metros! Os portos, por outro lado, não mudaram tanto assim. Como seria possível atender navios cada vez maiores sem comprometer a segurança? É aí que entra a tecnologia a serviço da precisão e eficiência da navegação portuária.
Entre as vantagens do modelo de praticagem privada e independente, como o adotado no Brasil, está o interesse dos profissionais na melhoria da infraestrutura e logística portuárias. Várias associações de práticos investem recursos próprios visando a melhoria dos portos onde prestam seus serviços, e um dos frutos dessa iniciativa tem sido a adoção do chamado calado dinâmico nos portos brasileiros _ recurso que tem se mostrado capaz de ampliar não só a capacidade máxima de carga, mas também a janela operacional dos portos.
Calado do navio e a Folga Abaixo da Quilha (FAQ)
O chamado “calado” do navio é a distância vertical entre a parte extrema inferior da quilha e a linha de flutuação de uma embarcação. É a medida da parte submersa do navio. Tecnicamente, é a distância da lâmina d’água até a quilha do navio, ou quantos metros o navio fica dentro da água.
O conhecimento do calado do navio em cada condição de carga e de densidade da água (em função da salinidade e temperatura) é fundamental para determinar a sua navegabilidade sobre zonas pouco profundas, em especial nos portos e em canais. Toda embarcação pode flutuar entre um calado máximo, quando ela está a plena carga, e um calado mínimo, quando ela está “em lastro” (completamente descarregada).
Portos, por sua vez, não possuem calado, mas sim uma profundidade, que é variável dependendo de muitos fatores, especialmente os fatores ambientais. Para que um navio possa ser autorizado a entrar em um porto, é preciso haver uma distância mínima de segurança entre a parte mais submersa do navio e a profundidade navegável do porto. Essa distância de segurança é chamada de Folga Abaixo da Quilha, ou FAQ.
A FAQ é um parâmetro variável que muda de acordo com o nível da água no momento da manobra, o tipo e dimensão do navio, as alterações na batimetria do porto e, principalmente, os fatores ambientais, tais como as ondas, os ventos e as correntes que podem afetar o calado dos navios durante as manobras. O conhecimento da distância entre o ponto mais profundo do casco do navio e o fundo do mar é essencial para garantir o trânsito seguro de embarcações até os berços de atracação e evitar o seu encalhe ou colisão com o relevo submarino.
Por esse motivo, a chamada FAQ estática é normalmente calculada com uma boa margem de segurança, levando em consideração dados históricos das tábuas de marés e outros fatores ambientais. A falta de informações precisas e/ou em tempo real sobre as atuais condições ambientais no momento da manobra obriga os profissionais envolvidos a fazerem cálculos conservadores para concluir quais navios podem entrar naquele porto e em qual período de operação. Essa realidade leva, no final das contas, a uma significativa perda na capacidade operacional dos portos.
Em adição aos fatores ambientais variáveis, o cálculo da FAQ é uma operação complexa que envolve a consideração de diversos fenômenos físicos complexos tais como o Squat, a Bank Suction, o Princípio de Arquimedes, o Princípio de Bernoulli, dentre outros.
FDAQ e o ganho de tempo de operação
Enquanto a FAQ estática é calculada utilizando-se médias históricas de fatores ambientais, o que se traduz em uma limitação das operações portuárias com base em estimativas, a chamada FDAQ, ou Folga Dinâmica Abaixo da Quilha, é calculada a partir de informações obtidas em tempo real, as quais são transmitidas por equipamentos de medição de alta precisão espalhados pela região da manobra. Essa análise contínua das condições ambientais permite aos profissionais do porto trabalharem com o chamado calado dinâmico do navio, calculado por meio de sistemas integrados aos sensores.
As incertezas na determinação da FAQ podem ser mitigadas com o emprego de sistemas dinâmicos capazes de obter as condições de mar e tempo e de prever os movimentos verticais do navio com acurácia, durante cada manobra específica. Em sistemas dinâmicos de cálculo do calado e da FAQ, são utilizados dados ambientais provenientes de equipamentos de medição em tempo real e também dados obtidos com antecedência, por meio de previsões numéricas das condições de mar e tempo desenvolvidas especificamente para a região do porto. Os equipamentos de medição incluem boias e estações maregráficas.
Outra vantagem do uso das previsões por modelos numéricos é a obtenção de janelas de maré mais acuradas que levam em consideração diversos outros fatores, como os efeitos meteorológicos capazes de gerar elevação e rebaixamento do nível médio do mar, os quais não são contemplados pelas tábuas de maré.
O uso da FDAQ permite aproveitar ao máximo o efeito das marés, ampliando a previsibilidade sobre o período de passagem liberada para os navios maiores. Esse aumento na janela de operação reduz o tempo perdido à espera da próxima oportunidade de manobra, o que gera um enorme ganho operacional para os portos.
Primeira implantação do calado dinâmico no Brasil
O primeiro projeto de calado dinâmico no Brasil começou em meados de 2016, no Porto de Santos, como iniciativa da Praticagem de São Paulo.
A tecnologia de cálculo do calado em tempo real, o chamado ReDRAFT, utilizada pela Praticagem de São Paulo, foi resultado de uma parceria entre a empresa Argonáutica e a Universidade de São Paulo (USP). À época, o Redraft foi uma tecnologia pioneira no Brasil e no mundo, desenvolvido com exclusividade para a Praticagem e testado no Tanque de Provas Numérico da Universidade de São Paulo.
A implementação do calado dinâmico no Porto de Santos era inevitável, considerando o crescimento constante do tamanho dos navios nos últimos anos. Se em 2000 os maiores navios no Porto de Santos possuíam 200 metros de comprimento e carregavam 20 mil toneladas, em 2016 as maiores embarcações já atingiam 336 metros de comprimento e 50 mil toneladas de carga. Era necessário um novo sistema, muito mais preciso, para otimizar o funcionamento do porto e permitir a entrada segura dos novos gigantes. Nas palavras do então presidente da Praticagem de São Paulo, Claudio Paulino:
“Não se trata de simples aumento do calado dos navios, mas do crescimento de todas as dimensões, como comprimento, largura e altura. A massa deslocada é cada vez maior, sofrendo influência mais acentuada de fatores como ventos e ondas”.
Ganhos operacionais do calado dinâmico
Os ganhos operacionais do calado dinâmico ficaram claros para o setor portuário em pouquíssimo tempo. Em 2018, a Praticagem do Brasil se reuniu para falar sobre o resultado da implementação do sistema no Porto de Santos e o futuro da tecnologia no país. Naquele ano, o ReDraft estava em fase inicial de implantação também no Porto de Suape (PE), e a Praticagem do Rio de Janeiro realizou mais de 300 manobras para testar o sistema em comparação com a medição tradicional da FAQ.
Para o Porto de Santos, os ganhos foram imensos. Com o novo sistema, o período de restrição de calado caiu de 7 dias e 6 horas em 2015, para 4 dias em 2016, e continuou caindo. Hoje, o período de restrição é de apenas 11 horas, o que representa uma redução de 94% do tempo ocioso. A notável ampliação da janela operacional nos últimos anos se traduziu em ganhos materiais para o porto, que acumulou crescimento anual de 4,9% na tonelagem e de 6,6% no volume de contêineres.
Maior porto do Brasil, Santos fechou o ano de 2022 com recorde de movimentação, com 162,4 milhões de toneladas de carga, montante 10,5% superior à melhor marca histórica, obtida em 2021. Em 2023, novos recordes de movimentação foram quebrados, com 15,3 milhões de toneladas movimentadas só em março. Sete anos depois da adoção do calado dinâmico, o Porto de Santos possui calado médio autorizado de 13,20 metros, que sobe para 14,20 metros com a utilização de 1 metro de altura de maré, estando apto a receber navios da classe New Panamax.
Regulamentação nacional via NORMAM 33
Considerando a experiência positiva da Praticagem de São Paulo e os benefícios estimados da implantação em larga escala do calado dinâmico nos portos Brasileiros, a Marinha do Brasil elaborou e publicou em dezembro de 2019 a NORMAM 33, norma que regulamenta a implantação e operação de sistemas de calado dinâmico para cálculo do calado dos navios e suas Folgas Abaixo da Quilha nos portos brasileiros.
A regulamentação foi um marco para o setor portuário, pois estabeleceu os procedimentos e requisitos técnicos necessários para a implantação de sistemas de calado dinâmico nos portos brasileiros, determinando inclusive os dados mínimos que o sistema contratado deve fornecer. Tais dados incluem margem de resposta aos efeitos das ondas (altura significativa, período e direção das ondas), velocidade e direção das correntes, intensidade e direção do vento, altura da maré, inclinação dinâmica e afundamento devido ao vento e guinadas, janelas de maré e horários de entrada e saída dos navios e, ainda, a previsão da FAQ e calado do navio para proa, meio-navio e popa, em cada ponto de controle nos canais de acesso, nas bacias de evolução e no berço, para cada navio-tipo.
Nesta norma, ficou definido também que é responsabilidade da Autoridade Portuária ou Administração Portuária solicitar a implementação do calado dinâmico e operacionalizar a tecnologia localmente. Para a operação dos sistemas, será necessário um parecer da Autoridade Marítima, incluindo visita ao parque de sensores e ao centro de operações.
A título de exemplo, entre os estudos que embasaram a criação da NORMAM 33, foi mostrado um potencial de aumento de até 1 metro de calado máximo dos navios em terminais portuários da Bahia, sem a necessidade de nova dragagem, um aumento de 500% nas janelas de atracação dos navios de maior calado (14,5m), além de uma redução de 60% no tempo de aguardo por maré para a entrada/saída dos navios nos terminais.
Projetos de Calado Dinâmico em andamento e o futuro
Após a publicação da NORMAM 33, a difusão da tecnologia de medição da FDAQ acelerou no país. Atualmente, existem vários projetos de medição do calado dinâmico em diferentes graus de implementação. Desde 2018, a Praticagem do Rio de Janeiro faz estudos para a implementação do sistema, que está na fase final. Em janeiro de 2023, dez estações meteorológicas, maregráficas e oceanográficas foram instaladas em diversos pontos da Baía da Guanabara para ajudar a alimentar, com dados obtidos em tempo real, o ReDraft utilizado pela Praticagem, entre outros sistemas de monitoramento do complexo portuário.
Já na maior zona de praticagem do mundo (ZP-1), em janeiro de 2022 foi definido um protocolo entre a Cooperativa de Apoio e Logística aos Práticos da Zona de Praticagem 1 e o Comando do 4º Distrito Naval com o objetivo de implantar o sistema de calado dinâmico na barra norte do Rio Amazonas. Três boias meteoceanográficas seriam instaladas para alimentar o sistema com informações sobre correntes, altura das marés, ventos e densidade da água, sendo que a primeira delas foi fundeada no Arco Lamoso em março de 2022. O sistema está em fase de testes e a expectativa é ampliar o calado atual na região de 11,7 metros para 13 metros, o que significa um ganho de 10 mil toneladas por navio classe Panamax.
Outros portos também estão buscando soluções de calado dinâmico, como o Complexo de Pecém (CE) e Portocel (ES), que iniciaram o processo de implementação em 2022. A expectativa para os próximos anos é de que, aos poucos, todos os portos do Brasil serão beneficiados com a tecnologia do calado dinâmico e poderão receber navios cada vez maiores e com janelas de restrição à navegação cada vez mais breves, trazendo indiscutíveis ganhos para a atividade econômica de suas respectivas regiões.
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FONTES:
Foto Emma Maersk: Por user:Nico-dk / Nils Jepsen – Fotografia própria, CC BY-SA 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1146162
https://www.manauspilots.com.br/barra-norte-do-rio-amazonas-tera-sistema-de-calado-dinamico/
https://www.facebook.com/watch/?v=319389246843351
https://ihr.iho.int/articles/dynamic-draft-and-under-keel-clearance-a-hydrographic-view/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Calado
https://www.fazcomex.com.br/comex/calado-do-navio-o-que-e/
https://issuu.com/conapratv/docs/rumos_praticos_62_portugues